As prodigiosas águas da bacia do rio Madeira, que, além dos botos, são percorridas por um terço das espécies de peixes de toda a Amazônia - ao menos 1000 espécies -, sempre foram cobiçadas pelos governos da Bolívia e do Brasil. Desde 2008, quando começaram a construir as barragens de Santo Antônio e Jirau, os dois países têm um acordo de cooperação para explorar a possibilidade de novos empreendimentos.
Naquela época, os planos já incluíam dois projetos: Ribeirão, uma usina hidrelétrica que pretendiam construir entre os municípios fronteiriços de Guayaramerín e Guajará-Mirim; e Cachuela Esperanza, que seria construída em território boliviano de mesmo nome. As duas barragens, juntamente com Jirau e Santo Antônio, fazem parte do tão desejado complexo hidrelétrico do rio Madeira, promovido pela IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul).
No caso da Bolívia, esse planejamento também faz parte da iniciativa "Bolivia corazón energético de Sudamérica" (Bolívia, coração energético da América do Sul), um dos principais planos energéticos promovidos pelo governo anterior, do ex-presidente Evo Morales, que integra a Agenda Patriótica 2025 e indica que, até esse ano, 95% da população boliviana teria energia elétrica e seriam exportados cerca de 3.000 (MW) de energia excedente para os países vizinhos.
Um plano para o qual, apesar das inúmeras reclamações dos povos indígenas, ativistas e cientistas sobre os múltiplos impactos ambientais e sociais decorrentes, o governo nacional fez ouvidos moucos. E planejou um investimento de 25 bilhões de dólares até 2025 para "represar" diferentes rios do país, com a construção de uma série de hidrelétricas.
Dois projetos: Ribeirão, entre os municípios fronteiriços de Guayaramerín e Guajará-Mirim, e Cachuela Esperanza, que seria construída em território boliviano.
Em relação ao recém-eleito presidente boliviano, Luis Arce, e ao novo plano de governo do Movimiento al Socialismo (MAS), a intenção é continuar com o empreendimento iniciado por Morales.
Já que seu programa indica que “os projetos em andamento e os novos que serão implantados para a produção de energia elétrica garantem o abastecimento do mercado interno e até a exportação de energia para os países da região”. Ao mesmo tempo que “é importante exportar energia elétrica para os nossos vizinhos, devemos multiplicar essa iniciativa para converter a energia no terceiro ramo de exportação para o Bicentenário (2025)”.
É assim que, dando continuidade a esses planos e após várias pressões de ambos os governos, em 2017, a aliança binacional entre a Empresa Nacional de Electricidad (ENDE) da Bolívia e a Eletrobras do Brasil concluiu uma licitação que escolheu Worley Parsons, uma empresa de engenharia com sede no Rio de Janeiro, para realizar os Estudos do Potencial Hidrelétrico Binacional da Bacia do Rio Madeira, financiados pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF).
Se espera que a aliança entre as empresas estatais de energia dos dois países - a Eletrobras e a ENDE - apresente esses estudos nos próximos meses, os quais preveem a construção de novas barragens no rio Madeira.
Segundo os documentos de acesso público, os estudos sobre o potencial hidrelétrico não se limitam unicamente ao rio Madeira, mas incluem também seus afluentes: Beni, Mamoré, Ribeirão, Yate, Negro e Lage. Uma situação que torna o debate sobre os impactos das usinas hidrelétricas já construídas no rio Madeira em algo extremamente vital neste momento.
Considerando a delicada situação já provocada pelas barragens do Madeira sobre os botos e outras espécies, quisemos conhecer também a opinião de outros pesquisadores e representantes da sociedade civil, para saber como enxergam os estudos que preveem a construção de mais barragens.
Silvia Molina, pesquisadora do Centro de Estudios para el Desarrollo Laboral y Agrario (CEDLA) comentou que “estamos diante de um tema de enorme violação dos direitos, e não somente isso, mas de violação das normas da Bolívia, de certos aspectos da Constituição, como o papel da Amazônia e das decisões soberanas”.
Molina também indicou que as características sob as quais esses estudos estão sendo realizados são pouco conhecidas. Prova disso foi que, ao tentar obter paralelamente mais informação em 2018, juntamente com organizações bolivianas e brasileiras, a Justiça brasileira respondeu que estas não poderiam ser fornecidas, pois existe um acordo de sigilo. E, no caso da Bolívia, o pedido de informação apresentado à Assembleia Legislativa não teve nenhuma resposta.
Engenheira civil com experiência em questões de transporte e infraestrutura energética, Molina está concluindo uma pesquisa junto ao CEDLA chamada: "El papel de la CAF como planificador en la energía hidroeléctrica regional".
Segundo a pesquisadora, a linha de ação da CAF como entidade financiadora do Estudo do Potencial Hidrelétrico estaria violando uma série de normas bolivianas referentes ao controle social, à transparência na gestão pública, bem como regulamentos internacionais em relação à responsabilidade dessas instituições financeiras multilaterais em afetar os direitos humanos.
Molina explica que o mais complicado neste momento é abrir esse estudo a um debate público e amplo, pois não se trata apenas de um debate energético, mas sim de um debate sobre a Amazônia boliviana.
A tempo de indicar que “estamos dando bastante atenção à transparência, um tema que vemos como violação dos direitos e a questão do papel da CAF em ver o desenvolvimento acima das pessoas".
À luz da pandemia, Worley Parsons tem procurado líderes comunitários e outros representantes locais para programar apresentações virtuais do projeto. Isso colocou em alerta os integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), uma das mobilizações populares mais influentes em todo o Brasil, que está presente em Rondônia desde a construção de Jirau e Santo Antônio.
Segundo Francisco Kelvin, coordenador do MAB em Rondônia, o movimento está orientando as comunidades a não aceitarem os convites para a apresentação de estudos das novas hidrelétricas. Para ele, as consultas virtuais não podem ser consideradas consultas populares de fato, já que muitas das comunidades afetadas não poderiam participar por falta de acesso à internet.
Lidia Antty, que faz parte do Comitê de Defesa da Vida Amazônica da bacia do rio Madeira, no município de Guayaramerín, em Beni, também foi uma das pessoas contatadas por Worley Parsons.
Antty disse, em tom de voz desanimado, por causa do jeito agir da empresa, que a companhia está entrando em contato com diferentes pessoas via WhatsApp, para apresentar o estudo de forma virtual.
"Quando pedimos que queremos uma carta oficial, e não uma mensagem no celular, então nos responderam que ainda não tinham concluído o estudo. Ou seja, não querem dar a informação de forma precisa.”
Na opinião de Kelvin, desde 2014 tem havido uma grande pressão por parte dos empresários para tirar as novas barragens do papel. O motivo, segundo ele, seria a percepção de que, sem usinas hidrelétricas adicionais rio acima, o fluxo de água do rio Madeira não seria previsível. Em 2014, as maiores inundações já registradas ocorreram ao redor do Madeira. Milhares de pessoas ficaram desabrigadas e as comunidades ribeirinhas foram destruídas pela força da água liberada pelas usinas.
“Ribeirão e Cachuela Esperanza permitiriam o controle da água, seria a caixa d'água perfeita”, disse o ativista, que aponta a usina hidrelétrica de Jirau como a principal beneficiária desse maior controle do fluxo.
Para a elaboração desta reportagem, entramos em contato com a Eletrobras para solicitar cópias dos estudos do potencial hidrelétrico que serão apresentadas à consulta pública, mas a empresa estatal brasileira nos informou que não fornece estudos em andamento.
E assim os botos e as comunidades ribeirinhas da Bolívia e do Brasil estão ‘confinados’ pelos ambiciosos planos de seus governos para usinas hidrelétricas, que ameaçam isolá-los ainda mais e são tão intransponíveis quanto as barreiras impostas pelas barragens do Rio Madeira.